domingo, 24 de junho de 2018





ERA UMA VEZ A “DOCE SEDUÇÃO” DE 76 ANOS

 * José Sana



Estamos num arraial chamado Cidadezinha Qualquer e precisamente no ano de 1942, mais definidamente no dia 1º de junho. Um grupo de jovens engenheiros, portando capacetes e vestidos de marrom, recém-formados, bate à porta da casa do senhor Sebastião, que se esconde jovialmente numa rocinha agradável, ar puro, horta sortida, pomar algumas vacas no quintal, galinhas poedeiras, porcos no chiqueiro. Ele tem mulher e quatro filhos, todos sadios, que estudam nas Escolas Reunidas Nossa Senhora do Jirau, no sopé de um morro íngreme, mais que abrupto, um gigante, que faz sombras a quilômetros de distância. E varam os dias felizes, aguardando terminar o curso das crianças para depois seguir para Belo Horizonte, a capital, quem sabe, onde querem estudar Direito e Medicina os meninos, as menina não, os pais esperam que a idade se complete para ver se arrumam um bom casamento. Ou, quem sabe, se tornem cultas professoras iguais as outras, bem educadas, ajudar na alfabetização da criançada dos arredores. 

Os engenheiros, declarando-se humildemente compadecidos por verem o senhor Sebastião pegando num machado afiado e agressor, cortando a lenha, o suor descendo-lhe fronte abaixo; a senhora dona Raimunda socando café no pilão, transpirando como chaleira no cozimento do inhame e da batata; os meninos, um fazendo os deveres de casa e o mais velho indo ao pasto buscar bezerros, era hora de prendê-los para que, no dia seguinte, seja muito farta a ordenha das vacas leiteiras, poucas, sim, mas que davam para o sustento da família e ainda para dona Raimunda fazer ora um requeijão queimadinho e ora um queijo para variar na merenda da turma. As meninas, assustadas com a visita inesperada, estavam na flor da pré-adolescência. Sedutores, os homens, querem conversar, têm ares de um mistério inimaginável para o surrado Sebastião, de mãos calosas, e com uma desconfiança despreocupada. “Será que querem comprar a minha terra? Ou será que é como nos filmes bang-bangs?” Sim, os que viu no cinema dia deste: o poderoso manda o capataz, que ordena sair, deixa todos sem teto e assume o lugar, como era no Velho Oeste de John Wayne, Burt Lancaster. Tom Mix. 

Mas os educados visitantes querem apenas fazer ofertas atraentes ou traiçoeiras, era só isso. E assentam-se em tamboretes de madeira de lei, puxam umas fumaças no cigarro de maços chiques, oferecem aos donos da casa e, em seguida, não perdem tempo: propõem emprego para o dono da casa e até uma tarefa para a senhora como arrumadeira de escritório, caso queira, “com todo o respeito que merece”. A resistência é a primeira arma do dono daquela linda paisagem. “Gosto daqui, não vou sair para trabalhar fora, muito obrigado por acharem tudo aqui muito bonito, já me disseram a mesma coisa”. Mas a sedução continua ligada e ao ar livre, e até citam exemplos: “Vocês conhecem o Jeremias? E o Mateus? Já ouviram falar do Antônio de Dona Maria? E este, aquele, aqueloutro?” Acrescenta um visitante: “Vão receber uma bolada boa!” Até que, manjando olhares da mulher, que suspira, promete dar resposta num prazo determinado, já que não oferecem dinheiro, mas citam valores que derrubam qualquer cabeça tida como irredutível. E, antes de fechar a conversa, além de prometerem levar o casal para o trabalho bem-remunerado, atrevem-se a deixar uma proposta: “Queremos primeiro comprar este terreno!” Despedem-se, estendendo as mãos: “Boa tarde, até quando pudermos falar, vão pensando no futuro muito cheio de fartura que espera vocês” — Assim vão-se os “simpáticos” visitantes, prometendo retornar algum dia para, quem sabe, o fechamento de negócios “interessantes”. 

Não é preciso dizer mais nada. Muitas famílias já não moram mais naqueles bucólicos lugares, bem pertinho de uma cidade que tem, na área urbana, menos de 5 mil habitantes. Trata-se de um vilarejo qualquer, mas muito agradável, que nunca, jamais, iria ser mudado caso não aparecesse uma máquina chamada ganância para acabar com o clima saudável, os pastos verdejantes, a horta, o pomar, a água brotando chão afora e descendo por dezenas de bicas. Estudar as crianças poderia ser sempre por ali mesmo até chegar a hora de uma escola mais adiantada. Afinal, a ambição de crescer, melhorar, educar a família não depende de saírem daquele mato cheio de vida. Para Sebastião e dona Raimunda, bastavam as forjas de ferro que se espalhavam na zona rural, além de duas respeitadas fábricas de tecidos. Será que tudo seria engolido por um tubarão sem mar? Agora estamos virando as décadas de 1970, 80, 90 e 2000. A população do vilarejo próximo se multiplicou por dez, beira os 120 mil seres humanos. Chegou o tal progresso e resolveu tomar conta de tudo, inclusive trouxe gente boa, mas também alguns descarados, manjados, atraídos pelo ouro que brilha. Onde estão Sebastião, Antônio, Mateus, Jeremias e outros e suas famílias? Uns foram para as oficinas, os portadores de maçaricos morreram de tanto usar a solda em extensas oficinas — esse processo de soldagem produz gases ou fumaças que contêm partículas altamente intoxicantes. Os que teimavam em viver mais chegaram a morar num lugar chamado Explosivo por “piedade” dos homens de camisas marrom; durou, no entanto, pouco, e de lá da também chamada Vila Sagrado Coração de Jesus, parede e meia com o aeroporto (cadê ele?) foram expulsos; as comunidades eclesiais de bairros acolheram os que puderam, muitos se alojaram numa exótica e ironizada Vila Paciência, de onde também foram convidados a dar o fora; houve muitos que toparam morar na Vila Conceição de Cima, que também seria extinta irremediavelmente, estumados como animais indesejáveis e ferozes. Nunca se teve notícia de uma cidadezinha qualquer tão vulnerável e que nem dava tempo de identidades se firmarem. 

Da segunda Vila Paciência, houve uma “dócil” permuta por trocados pagos a espertos, a uns poucos mais quantias, e a senhoras viúvas, coitadas, levem esses trocados e se virem. Para os mais poderosos deram o sonho melancólico de morar sob o reinado dos tais finos em suspensão. Até que inventaram uma enganadora legislação ambiental, mas que nada resolveu, apenas consolou, amenizou, deu esperança para que cada um se acomodasse e pudesse adquirir remédios para o combate a bronquites, rinites, sinusites, até se perder as “nites” e chieiras que ecoam no peito e nos pulmões e exalam as entranhas e poros.

Agora a dona do espaço que chegou como um minerador do Velho Oeste Americano, que se expandiu na sua influência até para outro estado da República, tem um trunfo nas mãos: “Não querem poeira, não querem poluição, não querem comprar remédio para a respiração, pois bem, nós oferecemos a parada das atividades, a pobreza deve fazer bem!” Quantas vezes a chantagem chegava nua, crua e transparente? E acenavam, também, aos cuidados de dona Exaustão, a poderosa aliada dos homens de marrom, agora de verde. Dão uma corda, dizem que não há risco, mas se vem o chiado, a frase sempre pulula no ar: “Podemos trocar poeira por praças, trincas nas paredes arrumamos e assim vocês, quem sabe, ficam felizes!” Ah, certa vez, depois de anunciar que essa senhora Exaustão se zarparia da Cidadezinha Qualquer, isto em 2025, o ano que ainda não chegou, vem um engenheiro simpático, careca, cheio de vida e diz: “Isso é conversa fiada, vamos exorcizar esse fantasma para sempre, ou pelo menos por mais 60 anos. Quem viver verá!” E, assim, a Cidadezinha Qualquer, que havia se tornado particular em troca de dinheiro podre, ter perdido vilas e bairros, campo de pouso, derrubado parte de seu patrimônio para dar lugar a prédios modernos, arranha-céus, ganha vida nova e coloca na cabeça: não existe dona Exaustão nada, era ilusão, esqueçam e vamos à frente. No entanto, aparece, agora um senhor, de nome Mercado, senhoril mais respeitado que Dalai Lama, Alah, Maomé e o Papa. 

E o pior, ao lado de forças aliadas de nome Dinheiro e Poder, além da receptividade de uma tal dona Bolsa de Valores. Agora, os próprios ex-moradores do sopé da serra (quanto menos os sedutores de marrom ou verde) não veem mais aquele clima dócil, ameno, gostoso, nem aquela família tão simples e feliz, mas contemplam, com medo de olhar para as caras assustadas, olhos arregalados, a triste dor do engodo de 76 anos que se passaram e deixaram crateras imensas, rastros de padecimentos, lembranças lúgubres. Contudo, precisam de novo seduzir os pobres-coitados, mostrar a eles que a simplicidade de um casebre acolhedor, meia dúzia de vacas soltas no pasto, um galinheiro, chiqueiro, horta, aquilo nunca existiu, visão ficcionista pura, besteirol comum da vida sem sentido.

E que, com a beleza do ar puro e da riqueza, foi criado, a estas custas da ficção da paisagem pura que existia, um gigante chamado Carajás, inquebrantável e que mete inveja. Quem custeou foi o grupo visitado pelos amarronzados sedutores, todos assim o quiseram, não houve nem golpe, nem sedução, bem poderiam estar, ainda desassossegados. Bolsão de pobreza? — onde inventaram esse palavrão? Mentira pura!

P.S.: Qualquer semelhança da terra promissora de 1942 com a atual, de 2018, quase oito décadas depois, é mera casualidade, invenção de Antônio, Mateus, Jeremias, Sebastião, o cortador de lenha, e da ingênua Raimunda, que socava café no pilão. O sonho agora é esquecer, esquecer, esquecer... Também nunca existiu um ou uma responsável pelas tragédias acumuladas, este nome é sonho inventado, pesadelo de quem comia batata e inhame, e não houve sedução: COMPANHIA VALE DO RIO DOCE.

*José Sana é editor do Blog de sua autoria chamado Notícia Seca.
Confiram lá, este e outros textos: http://www.noticiaseca.com.br/mobile/pg.php?id_cat=57&&id=303

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